Tramps!

Sabe aquele momento em que a gente se depara com uma obra que não só nos conta uma história, mas nos transporta para um universo que talvez nem sabíamos que precisávamos revisitar? Pois é, foi exatamente isso que aconteceu comigo ao (re)assistir Tramps!, o documentário de Kevin Hegge que, mesmo dois anos após seu lançamento original em 2023, ainda ressoa com uma energia quase palpável. Por que estou escrevendo sobre ele agora, você me pergunta? Porque a arte que questiona, que subverte e que celebra a individualidade jamais tem prazo de validade, e Tramps! é um mergulho corajoso naquilo que fez a contracultura ser tão vital.

Eu, particularmente, sempre tive uma fascinação por essas figuras que ousam pintar fora das linhas. Aqueles que, com a própria existência, se tornam um manifesto ambulante. E Tramps!, com a sensibilidade afiada de Hegge, nos apresenta um painel vivo desses arquitetos do (sub)mundo. Não é apenas uma lista de nomes; é um convite para sentir o pulso de uma era, o cheiro de suor e criatividade que emanava dos clubes, dos ateliês, das ruas de uma Londres vibrante e em constante reinvenção.

Pense comigo: Judy Blame, com a sua irreverência artesanal que transformava lixo em tesouro e subvertia a alta moda com um piscar de olhos. Você via um pino de segurança e ele via uma joia, um emblema de resistência. E Duggie Fields? Seu trabalho em tela é uma explosão de cor e forma, um grito pop que desafiava a sisudez do cânone. Como a mente de Hegge tece essas narrativas sem soar didático, apenas nos permitindo absorver essa efervescência? É como entrar numa sala onde a fumaça de cigarro e o som de uma batida eletrônica ainda pairam no ar, e cada silhueta que você vê carrega uma história que se recusa a ser esquecida.

E o que dizer de Princess Julia, essa figura camaleônica que atravessa gerações da cena noturna com a mesma graça e autenticidade? Ela não apenas testemunhou; ela foi a cena, uma embaixadora da ousadia. E John Maybury, um artista cuja visão singular se manifestava em filmes e performances que desafiavam as fronteiras do que era aceitável, do que era “arte”. Seus olhares, suas risadas, os trejeitos que Hegge captura são mais eloquentes do que qualquer monólogo. Não é só a voz deles que conta a história; é a maneira como acendem um cigarro, o brilho nos olhos ao recordar, o gesto que completa a frase.

Mas, para mim, o fio condutor, o coração pulsante dessa ode à singularidade, é Philip Sallon. Ah, Philip! Uma figura tão maior que a vida, um promotor de festas lendário, um agitador cultural que parecia surgir de um sonho febril, com suas roupas exuberantes e sua presença magnética. Ele não apenas organizava eventos; ele criava universos paralelos onde a fantasia era a moeda corrente e a conformidade era um anátema. Ver Sallon em cena é como assistir a um relâmpago: inesperado, deslumbrante e que ilumina tudo ao redor, mesmo que por um breve instante. Sua energia, mesmo filtrada pela tela, consegue nos contagiar, nos fazer entender o porquê de esses “tramps” terem sido tão cruciais para a evolução da cultura. Eles eram a anarquia necessária para que novas estéticas pudessem florescer.

O que Kevin Hegge e a produtora Low End conseguem é algo raro: um documentário que não apenas documenta, mas sente. Ele não nos entrega respostas mastigadas sobre o que essa turma significou; ele nos dá as ferramentas para que nós mesmos cheguemos às nossas conclusões. A montagem, o ritmo, as escolhas estéticas – tudo contribui para que a experiência seja menos de um espectador passivo e mais de um cúmplice que viaja no tempo. Em um mundo onde a individualidade é cada vez mais pasteurizada e vendida em pílulas, Tramps! é um lembrete urgente de que a beleza, a arte e a verdadeira revolução nascem da coragem de ser quem você é, sem desculpas, sem filtros. E essa mensagem, meu amigo, é atemporal. É por isso que, mesmo em 2025, eu ainda estou aqui, falando sobre ele, e provavelmente falarei por muito tempo. Vá assistir. Sinta. Deixe-se inspirar.