Você já se pegou pensando em filmes que, mesmo anos depois de sua estreia, te cutucam, te inquietam, se recusam a sair da memória? Pois é, eu me pego frequentemente. E, para mim, Eu Sou Todas as Meninas (‘I Am All Girls’), lançado lá em 2021, é um desses. Não é um filme que a gente assiste e esquece. Longe disso. É uma pancada, uma ferida aberta que, ao mesmo tempo que dói, nos obriga a olhar para um abismo que muitos prefeririam ignorar. E é por isso que, mesmo agora, em 2025, sinto a necessidade de falar sobre ele, de desmembrar suas entranhas e entender o porquê de sua permanência na minha mente.
Donovan Marsh nos entrega aqui um trabalho que transcende o simples entretenimento, mergulhando de cabeça nas águas turvas do tráfico de crianças – um tema que, por si só, já te deixa com um nó na garganta antes mesmo dos créditos iniciais. A sinopse é direta e chocante: uma detetive implacável e uma assassina se unem para caçar os membros de uma quadrilha. Só de ler isso, a gente já sente o peso da ambiguidade moral pairando no ar, não é mesmo? Não estamos falando de heróis de capa, mas de seres humanos empurrados para os limites, forçados a fazer escolhas impensáveis em nome de uma justiça que as leis, por vezes, parecem incapazes de entregar.
Quando a Fúria Veste a Pele da Lei e da Vingança
No coração dessa narrativa pulsante estão duas mulheres que representam lados opostos de uma mesma moeda desfigurada pela dor. De um lado, temos Jodie Snyman, interpretada com uma intensidade palpável por Erica Wessels. Wessels não apenas veste a jaqueta da detetive, ela encarna o cansaço, a frustração e a sede de justiça de uma mulher que testemunha diariamente as piores crueldades. Cada ruga em seu rosto, cada piscada demorada de seus olhos azuis, parece contar a história de mil noites insones, de relatórios empilhados e de um sistema que, apesar de suas melhores intenções, muitas vezes falha em proteger os mais vulneráveis. Ela é a lei, mas você sente, a cada passo dela, que essa lei está por um fio.
Do outro, e essa é a parte que realmente mexe com a gente, está Thamsanqa, vivida por Masasa Mbangeni. Thamsanqa é a personificação da vingança, um espectro silencioso e letal que se move nas sombras, desmantelando a rede criminosa com uma frieza quase assustadora. Mbangeni entrega uma atuação que não precisa de muitos diálogos para comunicar a profundidade de sua dor e a brutalidade de sua missão. Há uma quietude nela que grita. Ela não é uma vilã, nem uma heroína tradicional; ela é a consequência, o espelho deformado de uma barbárie. E a química entre Wessels e Mbangeni é o que realmente eleva o filme, transformando uma parceria improvável em uma dança complexa entre legalidade e desespero. Você vê a Jodie Snyman, a detetive, vacilar, se questionar, mas também entende o impulso primário da Thamsanqa, e a linha tênue que as separa se torna quase invisível.
| Atributo | Detalhe |
|---|---|
| Diretor | Donovan Marsh |
| Roteiristas | Marcell Greeff, Wayne Fitzjohn, Emile Leuvennink |
| Produtores | Jarrod de Jong, Wayne Fitzjohn, Jozua Malherbe, Lucia Meyer-Marais, Simon Swart |
| Elenco Principal | Erica Wessels, Deon Lotz, Masasa Mbangeni, Hlubi Mboya, Lizz Meiring |
| Gênero | Drama, Mistério, Thriller, Crime |
| Ano de Lançamento | 2021 |
| Produtoras | Nthibah Pictures, Nthibah Pictures |
Não podemos deixar de mencionar Deon Lotz como FJ Nolte, que, com sua presença imponente, adiciona mais uma camada de complexidade a esse universo já tão denso. Ou Hlubi Mboya como Ntombizonke Bapai, que, mesmo em cenas mais curtas, consegue imprimir uma força e uma dignidade que reverberam. O elenco, sob a batuta de Donovan Marsh, não apenas atua; eles respiram a sujeira, a desilusão e a resiliência de um mundo que se recusa a ser bonito.
A Anatomia de um Roteiro Implacável
O roteiro, assinado por Marcell Greeff, Wayne Fitzjohn e Emile Leuvennink, é o esqueleto robusto que sustenta toda essa carne dilacerada. Eles não têm medo de mergulhar no lado mais sombrio da humanidade, mas fazem isso com uma responsabilidade que evita o sensacionalismo barato. O mistério se desenrola com um ritmo que te prende na cadeira, alternando entre momentos de tensão sufocante e explosões de violência calculada. É um thriller policial no seu cerne, sim, mas é tingido com as cores cruas do drama e do crime, tornando a experiência visceral.
A forma como eles exploram as falhas do sistema e a impotência de pais e crianças diante de um mal tão organizado é angustiante. E a escolha do título, Eu Sou Todas as Meninas, é um golpe de mestre. Não é apenas uma frase de efeito; é uma declaração, um grito de solidariedade e uma lembrança de que cada vítima é uma parte de um todo, e sua dor é a dor de todos nós. O filme não nos oferece respostas fáceis, nem um final açucarado. Pelo contrário, nos deixa com um gosto amargo na boca e uma série de perguntas sobre justiça, vingança e o custo da humanidade.
A produção da Nthibah Pictures merece destaque por ousar contar uma história tão necessária e, ao mesmo tempo, tão dolorosa. Não é o tipo de filme que se encaixa em todas as programações de streaming; é aquele que você precisa estar preparado para assistir, para absorver e para digerir.
Em 2025, o impacto de Eu Sou Todas as Meninas ainda ecoa. É uma obra que te pega desprevenido e te sacode, te obrigando a olhar para o que está escondido sob o tapete. Não é um filme para te fazer sentir bem, mas para te fazer sentir. E, às vezes, sentir é o primeiro passo para a mudança, ou ao menos, para a consciência. É brutal, é necessário, e, sim, é um filme que, de alguma forma, vive em todas nós.




