O cheiro de pinho, as luzes cintilantes e aquela familiar melodia natalina que, de repente, parece mais um lamento do que uma celebração. Quem de nós não conhece a pressão do Natal? A necessidade de sorrir, de parecer feliz, de ignorar as pequenas fissuras que se formam entre os familiares enquanto se troca presentes embrulhados com um laço perfeito. É uma dança delicada de expectativas e realidades, não é mesmo? E se, por trás de todo esse verniz de normalidade, o mundo lá fora estivesse, literalmente, em seus últimos suspiros? É exatamente essa a premissa que me fisgou em A Última Noite (Silent Night), um filme que, confesso, ainda me revira por dentro sempre que penso nele.
Lançado discretamente em 2021, justamente na época em que o mundo ainda tateava sua própria versão de incerteza, este longa de Camille Griffin não é um filme de Natal para se assistir com a família na sala, a menos que sua família aprecie um bom soco no estômago existencial. É uma comédia – sim, acredite – de horror e ficção científica, mas não espere risadas fáceis ou monstros saltando da escuridão. O horror aqui é muito mais insidioso, muito mais humano. É aquele nó na garganta que aperta quando percebemos o absurdo de nossa própria existência e a fragilidade de nossos rituais.
A trama é deliciosamente simples na superfície: Nell (Keira Knightley) e Simon (Matthew Goode), um casal britânico impecável, reúne seus amigos mais próximos e suas famílias para a ceia de Natal em sua deslumbrante casa de campo. Taças de espumante se chocam, crianças correm, a comida está perfeita. A ambientação é idílica, quase saída de um catálogo de decoração. Mas você sente, quase imediatamente, que há algo terrivelmente errado. As risadas são um pouco forçadas, os sorrisos não chegam aos olhos. Há uma urgência silenciosa que permeia o ar, uma espécie de eletricidade nervosa que faz seus pelos arrepiarem antes mesmo que a verdade seja dita em voz alta: o mundo exterior está enfrentando um evento de destruição iminente e irreversível. Esta noite é, para todos eles, a última.
É aqui que a genialidade de Griffin se revela. Ela não se importa em nos mostrar a destruição ou a origem dela. Não, ela quer que nos concentremos na microesfera, no microcosmo daquela sala de jantar. Como reagimos quando o fim é inevitável e iminente? Como mantemos a compostura, a decência, a humanidade, quando sabemos que não haverá amanhã? A beleza brutal do filme reside na sua recusa em desviar o olhar do dilema moral que se apresenta a esses personagens: uma pílula. Uma “saída” que lhes promete uma morte indolor e digna antes que o “algo” lá fora os alcance.
Atributo | Detalhe |
---|---|
Diretora | Camille Griffin |
Roteirista | Camille Griffin |
Produtores | Matthew Vaughn, Trudie Styler, Celine Rattray |
Elenco Principal | Keira Knightley, Matthew Goode, Roman Griffin Davis, Annabelle Wallis, Lily-Rose Depp |
Gênero | Comédia, Ficção científica, Terror |
Ano de Lançamento | 2021 |
Produtoras | Marv, Maven Screen Media, Endeavor Content, Cloudy |
O elenco, meu Deus, o elenco! Keira Knightley, como Nell, é a personificação da anfitriã perfeita que se desfaz em mil pedaços sob a pressão de manter a ilusão de normalidade. Seus olhos, que sempre foram expressivos, carregam um peso de desespero e resignação que é palpável. Matthew Goode, como Simon, tenta ser o pilar de força, mas sua fachada se desintegra em momentos de vulnerabilidade chocante. E Roman Griffin Davis, interpretando Art, o filho de Nell e Simon, é a bússola moral do filme. É através de seus questionamentos infantis e irredutíveis que a hipocrisia e o desespero dos adultos são expostos sem filtros. “Por que temos que fazer isso?”, ele pergunta, e sua voz inocente ecoa as perguntas que nós, na plateia, estamos aterrorizados demais para verbalizar.
A forma como Griffin entrelaça o humor com a tragédia é uma navalha afiada. Há momentos que nos fazem rir, mas é aquele riso nervoso, quase histérico, que vem do abismo. É como rir no funeral de um inimigo que você secretamente admirava. Você se sente culpado, mas não consegue evitar. A cena em que os amigos tentam manter a etiqueta social, mesmo quando a ideia de amanhã se desintegra, é um testemunho da nossa estranha necessidade de ritual, mesmo diante do apocalipse. Não é uma comédia de piadas, mas uma comédia de situações absurdas que só a morte iminente poderia proporcionar.
E o terror? Ah, o terror não está nos monstros, mas nas escolhas. Está no silêncio entre as falas, nos olhares perdidos, na bebida que é consumida com uma voracidade que esconde o medo. O verdadeiro horror é a contemplação do suicídio como um ato de amor, uma forma de poupar a si e aos seus entes queridos de um fim ainda pior. É uma proposta desconfortável, que nos força a confrontar nossos próprios valores e o que faríamos se estivéssemos naquela situação. O filme não nos dá respostas fáceis; ele nos dá perguntas que pesam uma tonelada.
A Última Noite é, no fim das contas, uma profunda meditação sobre o que significa ser humano quando todas as máscaras caem. É sobre a família, os laços que nos unem e que, por vezes, nos sufocam. É sobre o medo, a esperança (ou a ausência dela), e a estranha dança que fazemos com a morte. Não é um filme para te animar no Natal, mas é um filme para te fazer pensar, para te fazer sentir, e, talvez, para te fazer apreciar um pouco mais o simples ato de respirar, mesmo que o mundo lá fora não esteja em seu melhor dia. Em um mar de filmes que buscam distrair, este filme de Camille Griffin tem a coragem de nos confrontar com o que realmente importa. E isso, para mim, é o melhor presente que um filme pode dar.