Há certas histórias que, por sua natureza intrínseca, carregam um peso imenso. Elas nos forçam a parar, a sentir, a refletir sobre o abismo da crueldade humana e a chama resiliente da esperança. Emancipation – Uma História de Liberdade é, sem dúvida, uma dessas. E cá estou eu, quase três anos depois de sua estreia no Brasil em dezembro de 2022, me pegando a revisitá-lo – não por mero capricho, mas porque a memória de Peter, o homem escravizado cuja jornada de fuga inspirou este filme, é algo que teima em se alojar na alma.
Não sei se você se lembra da recepção do filme na época, mas foi um lançamento que carregava uma carga extra de expectativase, digamos, complicações. Will Smith, no papel principal de Peter, tinha acabado de viver um momento bastante polêmico. Pois bem, o filme chegou e, para muitos, incluindo eu, a impressão inicial foi de um peso imenso sobre os ombros de uma narrativa que, talvez, não estivesse totalmente pronta para sustentá-lo.
O diretor Antoine Fuqua nos apresenta a Peter, um homem escravizado, mas não apenas isso: um marido, um pai, cuja existência é definida pela brutalidade de um sistema que o considera propriedade. A sinopse nos diz que ele arrisca a vida para escapar e voltar para sua família, e é aí que a coisa aperta. A premissa é visceral, sabe? Fugir, por amor e pela própria dignidade, é uma das mais potentes motivações que se pode conceber. Peter, interpretado por Smith com uma intensidade palpável, embarca nessa odisseia de resistência, cortando o caminho por pântanos traiçoeiros da Louisiana, perseguido sem trégua pelo capataz Jim Fassel (um Ben Foster com uma atuação que exala uma maldade fria e calculista).
É fácil cair na armadilha de esperar que filmes sobre escravidão sejam meras representações do sofrimento. Mas “Emancipation” se propõe a ser mais do que isso; ele se inclina para o gênero de guerra e história. E essa é uma dualidade fascinante. A guerra de Peter não é travada em campos de batalha com exércitos e canhões; é uma guerra pessoal, corpo a corpo contra a natureza, contra o tempo, e contra a própria estrutura de uma sociedade que o queria subjugado. O roteiro de Bill Collage tenta traçar essa linha fina, mas a grande questão é: ele consegue?
Atributo | Detalhe |
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Diretor | Antoine Fuqua |
Roteirista | Bill Collage |
Produtores | Jon Mone, Todd Black, Will Smith, Joey McFarland |
Elenco Principal | Will Smith, Ben Foster, Charmaine Bingwa, Gilbert Owuor, Ronnie Gene Blevins |
Gênero | Drama, Guerra, História |
Ano de Lançamento | 2022 |
Produtoras | Westbrook, McFarland Entertainment, Escape Artists, Apple Studios |
Aqui entra a nuance. A jornada de Peter é perigosa, cheia de privações, e o filme não se esquiva de mostrar a crueza da violência. Há momentos em que a câmera de Fuqua, conhecida por sua habilidade em coreografar ação e tensão, nos coloca bem no meio do pântano, sentindo o calor sufocante e o terror de cada passo incerto. As atuações, especialmente a de Will Smith, são inegavelmente comprometidas. Você vê nos olhos de Peter não apenas o medo, mas uma determinação feroz, uma chama que Dodienne (Charmaine Bingwa, com uma dignidade silenciosa) acendeu nele. Gilbert Owuor como Gordon e Ronnie Gene Blevins como Harrington também entregam performances que, mesmo em papéis secundários, contribuem para o cenário de desesperança e perigo.
No entanto, a crítica da época – e eu me inclino a concordar – sugeriu que, apesar de todo o esforço e da seriedade do tema, “Emancipation” lutou para se justificar, para se elevar acima do que já vimos. Não é que a história não seja importante – Peter é uma figura real, cuja fotografia das cicatrizes em suas costas se tornou um ícone do horror da escravidão. Mas a forma como a história é contada, por vezes, me pareceu mais focada no espetáculo da fuga do que na profundidade da alma ferida e da resiliência extraordinária.
Imagine a dor que se estampa na pele, cada sulco, cada cicatriz, um mapa da barbárie. E então, imagine a jornada de Peter, quilômetros de florestas densas e pântanos úmidos, com o constante som dos cães de caça em seu encalço. Fuqua tenta evocar essa sensação, usando um visual que, em muitos momentos, se inclina para o dessaturado, quase monocromático, o que pode ser uma tentativa de simular o estilo das fotografias da época e intensificar o drama, ou, para alguns, diminuir a paleta emocional do filme. E aqui reside uma das ambiguidades que tanto me chamam a atenção: essa escolha estilística nos conecta mais à realidade crua da época ou nos distancia, tornando a experiência um pouco mais “palatável”, menos perturbadora do que deveria ser?
A vida é cheia de contradições sutis, e a arte que reflete isso é a que mais ressoa. Em “Emancipation”, senti que, em alguns pontos, a complexidade da experiência de um homem escravizado, que vive entre a esperança e a desesperança, a dor e a determinação, foi simplificada para caber numa narrativa mais linear e cinematográfica. Não me entenda mal, o filme tem seus momentos de força, mas a sensação que persiste é a de que ele apenas arranha a superfície da verdadeira profundidade que a história de Peter merecia.
No fim das contas, Emancipation – Uma História de Liberdade é um filme que me faz pensar. Pensar no custo da liberdade, no inabalável espírito humano e na responsabilidade que temos de contar essas histórias. Ele não é perfeito, talvez não seja o filme definitivo sobre essa era brutal da história americana, mas é um lembrete contundente, um eco do passado que nos obriga a confrontar as sombras da nossa própria jornada enquanto humanidade. E por isso, mesmo com suas falhas, ele merece ser visto e, mais importante, discutido. Porque é na conversa, na reflexão, que a verdadeira liberdade começa a florescer.