Existe algo de magnético, quase ancestral, em Fevereiros. Quando penso neste documentário de Marcio Debellian, lançado lá em 2019 – já faz um tempinho, né? –, sinto uma espécie de portal se abrir na memória afetiva brasileira. Não é só um filme sobre o Carnaval ou sobre a Mangueira. É sobre a alma de um mês, de um povo, e da figura monumental de Maria Bethânia. Por que eu ainda me pego pensando nele, anos depois? Porque ele capturou uma verdade que a gente, no corre-corre, muitas vezes esquece: que a festa é só a ponta de um iceberg de fé, suor e uma devoção que transcende o simples aplauso.
Sabe, a gente tá acostumado a ver o desfile pronto, a apoteose da Marquês de Sapucaí, e aplaudir a genialidade ali na hora. Fevereiros nos convida a ir para as entranhas desse processo, a sentir o chão batido da quadra, o cheiro de tinta e cola, a tensão na feitura das fantasias. O filme pega a gente pela mão e nos leva de volta a 2016, ao ano em que a Mangueira pintou o sete e sagrou-se campeã com um enredo que era um presente para Maria Bethânia. Mas não é um registro frio e distante da vitória. Longe disso. É um mergulho em como essa vitória foi tecida, camada por camada, por fios de arte, de comunidade e de uma espiritualidade que me arrepia só de lembrar.
Marcio Debellian, junto com Diana Vasconcellos no roteiro, não apenas documentou; ele sentiu. A câmera passeia com uma intimidade que nos faz sentir parte da família Velloso, sentados à mesa com Bethânia, Caetano e a matriarca Mabel. Ali, você não vê artistas famosos, mas pessoas, com seus rituais, suas crenças, suas pequenas conversas que revelam o lastro de uma cultura. A Bethânia do filme é a Bethânia que a gente intui por trás do palco: a mulher de fé inabalável, a voz que acolhe, a sacerdotisa de sua própria arte. Ela não está “interpretando” a si mesma; ela está sendo, simplesmente. E a gente sente a força silenciosa de suas orações, a reverência em seus gestos. É um privilégio testemunhar esses momentos.
E o que dizer de Leandro Vieira? O carnavalesco que, àquela altura, já mostrava a que veio. O filme nos dá vislumbres da sua mente inquieta, da sua capacidade de traduzir a vida e a arte de Bethânia em alegorias e fantasias que falavam por si só. Não é só sobre criar um espetáculo; é sobre contar uma história, honrar uma ancestralidade, e ele faz isso com uma paixão que transborda da tela. A gente vê o nervosismo, a dedicação, a inventividade. E aí, a gente entende que o Carnaval é muito mais do que purpurina e samba no pé. É a cereja do bolo de meses de trabalho árduo, de sonhos e de uma fé coletiva que move montanhas de isopor, ferro e plumas.
| Atributo | Detalhe |
|---|---|
| Diretor | Marcio Debellian |
| Roteiristas | Marcio Debellian, Diana Vasconcellos |
| Produtores | Daniel Nogueira, Marcio Debellian |
| Elenco Principal | Maria Bethânia, Caetano Veloso, Mabel Velloso, Leandro Vieira, Pai Gilson |
| Gênero | Documentário |
| Ano de Lançamento | 2019 |
| Produtoras | Globo Filmes, Debê Produções, GloboNews, Canal Brasil |
Mas tem mais, e é aí que Fevereiros se torna algo quase transcendental. A conexão entre a preparação da Mangueira e as festas de Nossa Senhora da Purificação, na Bahia, é o pulso vital do filme. A gente não vê uma coisa separada da outra. A fé católica, o candomblé, a devoção a essa Nossa Senhora que é também Iemanjá, orixá das águas. Pai Gilson, com sua sabedoria serena, nos lembra que a arte e a espiritualidade estão intrinsecamente ligadas, que o chão da escola é também um terreiro. O documentário mostra as rezas, os banhos de mar, os cânticos que precedem e acompanham a folia. É uma tapeçaria rica, onde o sagrado e o profano se entrelaçam de forma tão natural que a gente se pergunta como pudemos um dia vê-los separados.
Para mim, Fevereiros é um convite a sentir o Brasil de um jeito mais profundo. Ele não tem pressa. Marcio Debellian nos dá tempo para absorver a cadência da Bahia, o ritmo frenético da quadra da Mangueira, a quietude de Bethânia em seu recolhimento. As imagens são límpidas, mas carregadas de emoção. O som, então, te abraça: o tambor que pulsa, a voz que canta, o burburinho da comunidade. É como se você pudesse sentir o cheiro da maresia e do incenso, tudo junto.
Hoje, em 2025, a vitória da Mangueira de 2016 já é história, mas o legado de Fevereiros permanece. Ele nos lembra que a cultura brasileira é um caldeirão de fé, arte e resistência. Que por trás de cada grande evento, há uma humanidade pulsante, que sofre, que luta, mas que, sobretudo, celebra a vida com uma intensidade que só nós, brasileiros, parecemos dominar. É um filme para ser visto, revisto e sentido. Uma ode à Maria Bethânia, sim, mas também uma ode à nossa própria capacidade de criar beleza e sentido a partir da vida. E isso, meu amigo, é algo que nunca sai de moda.




