A Voz Suprema do Blues

Certas histórias nos agarram pela gola da camisa e se recusam a nos soltar. A Voz Suprema do Blues, que chegou aos nossos ecrãs em 2020, é uma dessas. Revisitá-lo em pleno outubro de 2025, quase cinco anos depois de sua estreia, é perceber que o seu rugido ecoa ainda mais forte, mais relevante. Não é apenas um filme; é uma experiência visceral, uma aula de história e humanidade disfarçada de um drama musical encharcado de blues.

O que me puxa de volta a esse estúdio abafado de Chicago em 1927? Talvez seja a claustrofobia tangível que George C. Wolfe, o diretor, tão brilhantemente orquestra. Ou, quem sabe, a forma como a adaptação da peça de August Wilson, pelas mãos de Ruben Santiago-Hudson, nos transporta para um caldeirão de tensões raciais, artísticas e pessoais que, de alguma forma inquietante, parecem contemporâneas. Mas, para ser bem sincero, é a chama ardente das performances que permanece.

No centro de tudo, temos Ma Rainey, a “Mãe do Blues”, interpretada por uma Viola Davis que não atua, ela incorpora. Você sente o peso daquele casaco de pele, o suor escorrendo sob a maquiagem, a voz rouca que é um lamento e um comando ao mesmo tempo. Ma não pede respeito; ela o exige, o arranca de um mundo que insiste em roubar a dignidade de pessoas negras a cada esquina. Ela sabe que, para os produtores brancos, ela é apenas uma voz, uma fonte de lucro. E Ma, com sua sabedoria forjada em palcos empoeirados e noites solitárias, usa essa moeda de troca para defender cada centavo, cada minuto de sua arte, cada espaço de sua identidade – incluindo sua relação lésbica, que é apresentada com uma naturalidade que desafiava (e ainda desafia) muitas convenções. Ela é uma força da natureza, teimosa, protetora, uma mulher negra LGBTQ+ que se recusa a ser pequena. Eu me pego imaginando como era ser essa mulher, naqueles anos 1920, e a coragem que pulsava em suas veias.

E então há Levee. Ah, Levee. Chadwick Boseman, em seu último papel, entrega uma performance que é um soco no estômago, um grito primal. Levee é o trompetista jovem, ambicioso, cheio de sonhos e cicatrizes. Ele quer modernizar o blues, quer seu próprio som, quer ser reconhecido. Mas o que ele realmente quer é uma fatia do bolo, um lugar à mesa que lhe foi negado desde sempre. A energia dele é quase elétrica, um contraste com a gravidade de Ma. Você vê a esperança cintilando em seus olhos, mas também a dor profunda, o trauma que se manifesta em cada risada nervosa, em cada olhar desafiador. Há uma cena em particular, um monólogo que ele entrega para os companheiros da banda, Toledo, Cutler e Slow Drag, que é de uma intensidade arrebatadora. Aquele momento não é apenas sobre a peça; é sobre séculos de opressão, sobre a perda de fé, sobre a raiva reprimida que busca uma saída. O silêncio que se segue é mais ensurdecedor que qualquer melodia de blues.

AtributoDetalhe
DiretorGeorge C. Wolfe
RoteiristaRuben Santiago-Hudson
ProdutoresTodd Black, Denzel Washington, Dany Wolf
Elenco PrincipalViola Davis, Chadwick Boseman, Colman Domingo, Glynn Turman, Michael Potts
GêneroDrama, Música
Ano de Lançamento2020
ProdutorasEscape Artists, Mundy Lane Entertainment

O estúdio de gravação não é apenas um cenário; é um purgatório. O calor sufocante, a porta trancada, os atrasos, as exigências mesquinhas dos chefes brancos que mal conseguem disfarçar seu desprezo enquanto aguardam a “música negra” que tanto vendia. É nesse espaço apertado que as tensões borbulham. A banda – com Cutler (Colman Domingo) tentando manter a paz, Toledo (Glynn Turman) pontificando com uma filosofia dolorosamente lúcida, e Slow Drag (Michael Potts) observando com um silêncio eloquente – se torna um microcosmo da comunidade negra da época. Eles discutem sobre fé, sobre o diabo, sobre o lugar do homem negro na América, sobre a validade do blues como forma de resistência ou de aprisionamento. Cada diálogo, tão fiel à cadência de Wilson, é uma camada a mais na pele da história. As palavras não são apenas faladas; elas são cuspida, lamentadas, sussurradas, revelando camadas de caráter, experiências de vida, e a linha tênue entre a camaradagem e o desespero.

A Voz Suprema do Blues não te oferece respostas fáceis. Pelo contrário, ela te faz questionar: qual o preço da arte quando a alma é a mercadoria? Onde reside a verdadeira liberdade quando você vive sob o jugo da exploração? É um filme sobre música, sim, mas é, acima de tudo, sobre a resiliência humana diante de um sistema implacável. Sobre a luta para manter sua voz, sua verdade, mesmo quando tudo ao redor tenta silenciá-la. George C. Wolfe nos entrega um filme que pulsa com a energia do blues – melancólico, poderoso, inesquecível.

Se você ainda não se permitiu mergulhar nessa obra, faça-o. Você não sairá ileso. Você vai se sentir incomodado, talvez um pouco quebrado, mas também profundamente tocado pela humanidade e pela fúria que permeiam cada frame. É um filme que, como o melhor do blues, raspa a ferida para que possamos entender a dor, mas também a beleza indomável do espírito humano. E em Ma Rainey e Levee, encontramos dois faróis, dois lamentos que reverberam muito além dos confins daquele estúdio em Chicago, iluminando as verdades eternas sobre a arte, a opressão e a inabalável busca por um lugar ao sol.

Trailer

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