A vida, meus caros leitores, é um tecido complexo, urdido com fios de amor, perda e, invariavelmente, com as expectativas que a sociedade tece para nós. Dizem que “o sangue é mais espesso que a água”, uma frase que ecoa em nossa cultura, muitas vezes para validar laços familiares automáticos, aqueles que nos são impostos pelo nascimento. Mas e se a água, aquela que flui calmamente entre dois corações por décadas, se mostrar mais densa, mais vital, do que qualquer gota de sangue? É essa a questão que me pega pelo colarinho toda vez que penso em All Shall Be Well, o filme de Ray Yeung que me fez repensar o que realmente significa “família”.
Não é por acaso que este drama me marcou tão profundamente. Em um mundo que ainda luta para reconhecer todas as formas de amor, ver uma história tão íntima e humana como a de Angie e Pat ser contada com tanta delicadeza é um bálsamo. O filme, que chegou às telas brasileiras em 15 de novembro de 2024, nos leva a Hong Kong para um encontro com a velhice, a solidão e, acima de tudo, a resiliência de um amor construído fora das caixas sociais.
Angie, interpretada com uma profundidade silenciosa por Patra Au Ga-Man, é a alma que nos guia. Seus ombros curvados não carregam apenas a passagem do tempo, mas também o peso de uma vida de afeto discreto ao lado de Pat (Maggie Li Lin-Lin). A morte de Pat é o tremor que abala o alicerce de Angie, mas também a brecha por onde se infiltra um tipo diferente de tormenta: a família biológica de Pat. A memória de um amor de quarenta anos, uma história de vida lésbica vivida muitas vezes nas sombras, agora é questionada, minimizada, quase apagada pelos laços de sangue.
É aqui que a maestria de Ray Yeung como diretor e roteirista se revela. Ele não nos entrega um melodrama simplista de vilões e vítimas. Em vez disso, ele nos imerge na sutil, mas corrosiva, discriminação que Angie enfrenta. Os parentes de Pat – Mei (Hui So-Ying), Shing (太保) e Victor (Leung Chung-Hang) – não são caricaturas. São pessoas que, em sua própria ignorância e busca por herança, representam a homofobia sistêmica que ainda permeia muitas sociedades, inclusive a nossa. As mãos de Angie tremem ao segurar um copo de chá enquanto ouve sugestões de que ela deveria se mudar, ou de que “elas não eram realmente uma família”. É nessa micro-agressão, nessa tentativa de deslegitimar um amor tão palpável, que o filme se torna tão poderoso.
Atributo | Detalhe |
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Diretor | Ray Yeung |
Roteirista | Ray Yeung |
Produtores | Michael J. Werner, Teresa Kwong Pui-Sin |
Elenco Principal | Patra Au Ga-Man, Maggie Li Lin-Lin, Hui So-Ying, 太保, Leung Chung-Hang |
Gênero | Drama |
Ano de Lançamento | 2024 |
Produtora | New Voice Film Productions Ltd. |
A atuação de Patra Au Ga-Man é um espetáculo à parte. Ela mostra, sem dizer muito, a dignidade inabalável de Angie, a dor da perda e a teimosia em proteger a memória de Pat. Seu olhar, muitas vezes fixo em um ponto distante, parece atravessar décadas, revisitando momentos de felicidade e de luta que só ela e Pat compartilharam. É uma performance que fala sobre a história de lésbicas que, por muito tempo, tiveram que construir seus mundos íntimos em segredo, longe dos olhos julgadores, e que agora, na velhice, enfrentam a ameaça de seu legado ser varrido para debaixo do tapete.
Yeung tem um dom para os detalhes. O apartamento que Angie e Pat compartilharam não é apenas um cenário; é um personagem, cheio de objetos que guardam memórias, um santuário agora sob ameaça. As cenas são pontuadas por silêncios eloquentes, pelo ruído de uma chaleira no fogo, pela luz que entra pela janela, banhando Angie em uma melancolia discreta. Esse ritmo deliberado nos convida a sentir o tempo passar com a mesma lentidão que Angie sente a ausência de Pat, ao mesmo tempo em que a urgência de defender seu lar e sua verdade cresce silenciosamente.
All Shall Be Well não promete um final onde todos os males são dissipados por um passe de mágica. A frase do título, na verdade, ressoa com uma ironia agridoce, um desejo que se contrapõe à dureza da realidade da discriminação e da homofobia. Contudo, o filme nos deixa com uma sensação de esperança, uma esperança na força do espírito humano para resistir, para amar e para reivindicar seu lugar no mundo, independentemente do que o “sangue” ou a sociedade possam dizer. É um lembrete pungente de que algumas das maiores lutas da vida acontecem nos cantos mais íntimos de nossos lares e corações.
E você, o que pensa sobre a ideia de que laços de sangue são sempre mais fortes? Deixe sua opinião nos comentários!