Às vezes, a gente se depara com um filme que não só assiste, mas que habita a gente por dias, semanas, talvez até meses. Não é apenas uma história contada, mas uma experiência que se incrusta, muda um pouco a maneira como você vê as sombras nos cantos da sua própria vida. E é exatamente isso que America Latina dos irmãos Fabio e Damiano D’Innocenzo fez comigo quando o assisti. Lançado lá fora em 2022, é uma daquelas pérolas que ainda aguardamos ansiosamente por uma data de estreia no Brasil, e, sinceramente, a espera dói um pouco mais a cada dia que passa sem que mais gente possa mergulhar nesse abismo.
O que me puxa para escrever sobre esta obra não é só o enredo envolvente ou a estética impecável, mas a forma brutal e delicada como ela explora a fragilidade da mente humana. É um convite – ou seria um empurrão? – para um mergulho em um pesadelo que se desenrola sob a luz do dia, em uma Roma que, sob o olhar dos D’Innocenzo, perde seu glamour turístico e assume um tom quase opressor, de beleza decadente e segredos sussurrados.
Desde o primeiro minuto, America Latina nos apresenta a Massimo Sisti, interpretado com uma maestria desarmante por Elio Germano. Sabe aquele cara que parece ter a vida perfeita? Pois é, Massimo é assim. Um dentista respeitado, um pai de família devotado, com uma esposa (Alessandra Sisti, vivida por Astrid Casali, que exala uma quietude intrigante) e filhas que formam um quadro de aparente plenitude. Ele nos é mostrado como o pilar da sua casa, um homem que irradia uma calma quase monástica em sua rotina metódica. Suas mãos, antes firmes e precisas no consultório, são as mesmas que seguram as filhas no colo, que acariciam o rosto da esposa. Mas há algo no ar, uma névoa sutil que paira sobre essa perfeição. Você sente.
A beleza do trabalho dos D’Innocenzo reside na forma como eles não te entregam o monstro de uma vez. Não. Eles o constroem tijolo por tijolo, camada por camada, até que a fundação da realidade de Massimo começa a ruir. O thriller aqui não é de perseguição ou de explosões, mas da mente que se desintegra. Quando um acontecimento inexplicável – um suposto sequestro infantil que ecoa por toda a narrativa, ora como gatilho, ora como delírio – lança Massimo em uma espiral, Elio Germano se entrega ao personagem de um jeito que pouquíssimos atores conseguem. Você vê a rigidez de seu corpo, antes tão controlada, transformando-se em uma tensão constante, os olhos que antes transmitiam segurança agora dançam entre o pavor e a incompreensão. É a mais pura “descida à loucura”, com a “esquizofrenia” não como um diagnóstico frio, mas como uma vivência sensorial, quase palpável.
Atributo | Detalhe |
---|---|
Diretores | Fabio D'Innocenzo, Damiano D'Innocenzo |
Roteiristas | Fabio D'Innocenzo, Damiano D'Innocenzo |
Produtor | Lorenzo Mieli |
Elenco Principal | Elio Germano, Astrid Casali, Sara Ciocca, Maurizio Lastrico, Carlotta Gamba, Federica Pala, Filippo Dini, Massimo Wertmüller, Roberta Crolle, Dacia D'Acunto |
Gênero | Thriller |
Ano de Lançamento | 2022 |
Produtoras | The Apartment Pictures, Vision Distribution, Le Pacte |
Os irmãos diretores são mestres em “mostrar, não contar”. Em vez de nos dizer que Massimo está perdendo o controle, eles nos mostram o reflexo distorcido em uma superfície polida, o silêncio perturbador que se instala na casa, os diálogos que parecem existir em planos distintos. A câmera se move com uma lentidão hipnotizante, permitindo que o espectador sinta o peso de cada cena, a claustrofobia que aos poucos envolve Massimo. Você sente o ar rarefeito, a textura da parede fria, o cheiro metálico do medo.
A casa da família Sisti, por si só, é um personagem. Uma espécie de casulo que se torna prisão, com seus cômodos que se estendem e se contraem, como a própria mente do protagonista. Ela é, em si, uma analogia para o estado psicológico de Massimo: aparentemente robusta por fora, mas com rachaduras internas que se alargam, ameaçando derrubar tudo. A fotografia, com sua paleta de cores frias e tons dessaturados, acentua essa atmosfera de irrealidade e desespero silencioso.
America Latina é uma obra que nos obriga a confrontar a fragilidade da nossa percepção do que é real. É um daqueles filmes que te convida a questionar não só o que está acontecendo na tela, mas também as linhas tênues que separam a sanidade da loucura em nossas próprias vidas. É um lembrete visceral de que o maior terror muitas vezes não vem de fora, mas nasce e cresce dentro da nossa própria cabeça. E é por essa coragem em nos fazer mergulhar nesse lado menos iluminado da experiência humana que America Latina é um filme que merece, e muito, ser visto. Espero de verdade que chegue logo por aqui, para que mais de nós possamos ser assombrados por essa obra de arte perturbadora e inesquecível.