Até os Ossos

Sabe, de vez em quando, surge um filme que simplesmente se recusa a ser categorizado. Um desses que, ao final da sessão, você se pega questionando não apenas o que acabou de ver, mas também o que sentiu. Para mim, Até os Ossos (Bones and All) é exatamente esse tipo de experiência cinematográfica, uma que me deixou com a sensação agridoce de ter sido ao mesmo tempo assombrado e profundamente tocado. E é por isso que, mais de dois anos após sua estreia no Brasil, em 1º de dezembro de 2022, o filme de Luca Guadagnino ainda ressoa em mim com uma força perturbadora e inegável.

Guadagnino, um diretor que já nos acostumou a narrativas que exploram a sensualidade e o despertar em contextos muitas vezes idílicos – vide “Me Chame Pelo Seu Nome” – aqui nos joga de cabeça num universo bem mais cru e estomacal. Mas não se enganem: por trás da premissa chocante, que à primeira vista sugere um terror visceral, reside uma das histórias de amor mais ternas e desoladoras que vi nos últimos tempos. E é essa dualidade que faz de Até os Ossos um verdadeiro fenômeno de genre bending.

A trama nos apresenta Maren (uma Taylor Russell que entrega uma performance de tirar o fôlego, cheia de vulnerabilidade e força), uma jovem que tenta se ajustar à vida normal, mas é forçada a encarar sua “peculiar apetite” quando um incidente macabro a obriga a fugir de casa. Seu pai, interpretado com uma dor palpável por André Holland, a abandona, deixando-a com uma fita cassete explicando a origem de sua condição. Maren, então, embarca numa odisseia solitária pelo Meio-Oeste americano da década de 1980, um cenário de carros enferrujados, paisagens desoladas e uma melancolia intrínseca. É nessa estrada empoeirada que ela encontra Lee (Timothée Chalamet, que mais uma vez prova seu alcance), um andarilho com o mesmo “segredo obscuro”.

A partir daí, o que poderia ser apenas um filme de terror gore se transforma num pungente “road movie” sobre a busca por pertencimento, a culpa avassaladora e a possibilidade de amor em meio à abjeção. A química entre Russell e Chalamet é palpável, uma chama que acende e se fortalece a cada parada, a cada conversa íntima, a cada momento de cumplicidade. Eles são dois párias, dois jovens com uma “adição” inescapável, tentando encontrar um jeito de sobreviver e, mais importante, de amar, num mundo que os rejeitaria se soubesse a verdade. A narrativa de David Kajganich, adaptada de um romance, é hábil em construir essa jornada de mil e quinhentos quilômetros, permeada por passagens ocultas e alçapões, levando-os a confrontar seus passados traumáticos.

Atributo Detalhe
Diretor Luca Guadagnino
Roteirista David Kajganich
Produtores David Kajganich, Luca Guadagnino, Francesco Melzi d'Eril, Theresa Park, Marco Morabito, Peter Spears, Lorenzo Mieli, Gabriele Bebe Moratti, Timothée Chalamet
Elenco Principal Taylor Russell, Timothée Chalamet, Mark Rylance, Anna Cobb, André Holland
Gênero Terror, Romance, Drama
Ano de Lançamento 2022
Produtoras Frenesy Film, Per Capita Productions, MeMo Films, The Apartment Pictures, 3 Marys Entertainment, Tenderstories, Elafilm

A beleza do filme está justamente em como ele nos força a simpatizar com o que, em qualquer outra circunstância, seria repulsivo. O canibalismo, aqui, é uma metáfora brutal para a alteridade, para o vício, para a necessidade primal de se conectar e, paradoxalmente, de consumir o outro. Há uma sensibilidade impressionante na forma como Guadagnino filma a intimidade entre Maren e Lee, fazendo-nos sentir a ternura de seus toques, o calor de seus corpos, mesmo sabendo que há algo sinistro à espreita. Não é um filme que glorifica a violência, mas que a contextualiza dentro de uma profunda e desesperadora “love story”, explorando o “sentido de culpa” que persegue esses personagens a cada passo.

E então, temos Sully. Ah, Sully! Mark Rylance entrega uma atuação que me gelou a espinha e, ao mesmo tempo, me intrigou profundamente. Seu personagem é um predador, sim, mas também uma figura de solidão abissal, um vislumbre perturbador do que Maren e Lee poderiam se tornar se deixassem suas almas serem consumidas apenas por suas necessidades mais sombrias. Ele personifica o lado mais puro do terror e do “body horror” que o filme tão bem equilibra com o romance. A sua presença, sempre à espreita, adiciona uma camada de suspense que mantém o espectador na ponta da cadeira, questionando as intenções de cada estranho na estrada.

As produtoras Frenesy Film, Per Capita Productions e todas as outras envolvidas entregaram um trabalho impecável, criando uma atmosfera que transporta o espectador diretamente para a América de Reagan, um período de idealismo conservador que contrasta brutalmente com a marginalidade e a desesperança vivenciadas pelos protagonistas. Os detalhes visuais – desde a “pickup truck” caindo aos pedaços até as roupas desbotadas – contribuem para uma sensação de autenticidade que engrandece a jornada.

Até os Ossos me deixou pensando por dias. Não é um filme fácil de digerir, e nem deveria ser. Ele exige que o espectador se entregue à sua proposta, que olhe além do brutal e encontre a humanidade, a fragilidade e a esperança em um cenário que se esforça para ser desumano. É uma exploração visceral do “primeiro amor” sob as circunstâncias mais extremas, uma meditação sobre “abandono familiar”, a busca por uma “mãe estranha” e a inevitável colisão entre amor e instinto. A reta final do filme me encheu de uma emoção tão intensa que, sim, me levou às lágrimas, provando que é possível se sentir horrorizado e profundamente comovido ao mesmo tempo. É uma mistura perfeita que eu, honestamente, não sabia que precisava. É um filme que, sem dúvida, vai grudar nos seus ossos e na sua alma. E isso, meu caro leitor, é o maior elogio que posso dar.

Trailer

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