Caixa de Memórias: Um mergulho doloroso e necessário na herança familiar
Confesso, ao começar a assistir Caixa de Memórias (2021), esperava um drama familiar mais contido, algo na linha de um estudo de personagem introspectivo. O que encontrei, porém, foi algo muito mais visceral, um filme que te agarra pela garganta e te força a confrontar as sombras que muitas famílias, especialmente aquelas marcadas pela diáspora e pelo trauma, carregam consigo. Quatro anos depois de sua estreia na Berlinale, ainda me pego pensando na força bruta dessa produção franco-libanesa-canadense, que em setembro de 2025 continua a ecoar em minha memória.
A sinopse, sem spoilers, é simples: uma caixa misteriosa chega à casa de Alex, no Canadá, revelando segredos obscuros do passado de sua mãe, Maia, uma mulher libanesa que carrega as marcas da guerra civil e de perdas incomensuráveis. A partir daí, o filme se desdobra numa narrativa intercalada entre o passado de Maia, no Líbano, e o presente de Alex, no Quebec, criando uma espiral de revelações dolorosas que afetam profundamente a relação entre mãe e filha.
A direção de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige é magistral. Eles conseguem equilibrar com maestria a delicadeza de momentos íntimos com a força bruta das imagens que retratam a guerra no Líbano. A fotografia, ora suave, ora brutalmente realista, acompanha a jornada emocional das personagens com sensibilidade. A construção da narrativa não-linear, intercalando passado e presente, funciona de forma impecável, criando um suspense que vai além do mistério da caixa. Não é um suspense policial, mas sim um suspense emocional, um suspense da própria memória, que te deixa ansioso para desvendar as camadas da dor que envolvem Maia e sua família.
Atributo | Detalhe |
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Diretores | Joana Hadjithomas, Khalil Joreige |
Roteiristas | Normand Bergeron, Benoît Pilon, Marc Robitaille |
Produtores | Christian Eid, Barbara Letellier, Georges Schoucair, Carole Scotta |
Elenco Principal | Manal Issa, Rim Turki, Paloma Vauthier, Clémence Sabbagh, Hassan Akil |
Gênero | Drama |
Ano de Lançamento | 2021 |
Produtoras | micro_scope, Abbout Productions, Ginger Beirut Production, Haut et Court |
O roteiro, escrito por Normand Bergeron, Benoît Pilon e Marc Robitaille, é preciso e pungente. A construção das personagens, especialmente Maia, interpretada com uma força e vulnerabilidade impressionantes por Rim Turki (na versão adulta) e Manal Issa (na versão jovem), é impecável. Turki e Issa entregam performances que transcendem a atuação, elas encarnam a dor, a resiliência, a luta pela sobrevivência de uma mulher marcada pela guerra e pela perda. Paloma Vauthier também está notável como Alex, a filha que precisa lidar com a herança familiar tão carregada. O elenco inteiro demonstra um comprometimento visível com a construção de um universo emocional denso e crível.
Um dos pontos fortes do filme é a forma como ele retrata a relação complexa entre mãe e filha, uma relação repleta de silêncios, incompreensões e, finalmente, compreensão. Alex, a princípio, percebe Maia como uma figura distante e inexpressiva, mas aos poucos descobre as razões por trás dessa aparente frieza. É uma relação que ecoa em muitas famílias e que, portanto, torna o filme universal apesar da especificidade do contexto libanês.
Um ponto, digamos, “mais complicado” é a abordagem do suicídio do pai. Embora o filme não o glorifique, e sim o explore como um resultado das circunstâncias devastadoras vividas pela família, achei que ele poderia ter sido tratado com ainda mais nuance. Entendo as restrições narrativas, mas senti a necessidade de um aprofundamento ainda maior.
Caixa de Memórias não é um filme fácil, e talvez isso tenha influenciado sua recepção relativamente discreta fora do circuito de festivais. Não é um filme para quem busca entretenimento leve. É uma obra que exige reflexão, que te provoca, que te confronta com temas pesados como a guerra, o luto, o trauma intergeracional e a busca pela identidade em um contexto de migração. Mas justamente essa dificuldade é a sua grande força. Ele é uma janela para um mundo muitas vezes invisível, uma oportunidade de confrontar as feridas do passado e a importância da reconciliação familiar, seja esta reconciliação consigo mesmo ou com os familiares.
Em conclusão, Caixa de Memórias é um filme essencial, um estudo sobre a transmissão do trauma, sobre a memória como um fardo e como uma possibilidade de cura. Apesar de alguns pontos que poderiam ter sido mais aprofundados, a força da direção, das atuações e do roteiro superam quaisquer pequenas fragilidades. Recomendo fortemente sua visualização, mas aviso: prepare-se para uma experiência emocionalmente intensa. Se você busca um filme que te marcará, que te fará pensar, que te moverá, então Caixa de Memórias é a escolha certa. Procure-o em plataformas digitais – vale cada segundo.