Vinte e quatro anos se passaram desde que Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, no original) emergiu das profundezas da mente de David Lynch, e cá estamos nós, em 2025, ainda falando sobre ele. Por que? Porque, para mim – e arrisco dizer, para muitos de vocês –, este não é apenas um filme; é uma experiência, um labirinto onírico que se enraíza na sua memória e se recusa a sair. Eu me lembro da primeira vez que o vi, anos atrás, e a sensação foi de ter sido arremessado num redemoinho de imagens e sons sem uma bússola. Aquele trecho de crítica que diz “não entendi nada” era eu, em carne e osso. Mas, ah, como as coisas mudam. Hoje, revisitá-lo é como decifrar um enigma pessoal, uma jornada que vale a pena ser compartilhada.
Lynch não faz filmes; ele conjura visões. E Cidade dos Sonhos é, talvez, a mais potente de suas conjurações. De cara, somos apresentados a Hollywood, a “cidade dos sonhos”, mas logo percebemos que esse verniz dourado esconde algo podre, algo que se retorce como um adder em esteroides – pra usar as palavras de um crítico. A narrativa, aparentemente linear no início, nos joga no colo de Betty Elms (uma Naomi Watts absolutamente brilhante), uma jovem atriz cheia de esperança, recém-chegada a Los Angeles, com um sorriso que ilumina a tela. Ela é o clichê da inocência que busca o estrelato, o que nos faz pensar: ‘Ah, tá, mais uma história de Hollywood’. Mas é aí que o mestre Lynch nos pega.
Na casa de sua tia, Betty encontra uma estranha: uma mulher morena (Laura Harring, magnética e misteriosa), que sofre de amnésia após um terrível acidente de carro. Ela se lembra apenas da palavra “Rita”, inspirada num pôster de Rita Hayworth. E assim começa a intriga. Betty, com sua ingenuidade contagiante, decide ajudar Rita a desvendar seu passado. Elas brincam de detetive, e nós, espectadores, somos convidados a participar dessa busca por identidade. As pistas são poucas, o perigo é palpável, e um assassino de aluguel desastrado (o hilário Joe de Mark Pellegrino) surge para adicionar uma camada de humor negro e imprevisibilidade. É uma jornada que, num primeiro momento, nos parece um suspense neo-noir clássico, com pitadas de mistério e um toque de drama romântico, à medida que a conexão entre as duas mulheres se aprofunda, explorando nuances de bisexuality de uma forma que é ao mesmo tempo delicada e profundamente perturbadora.
Mas Cidade dos Sonhos é David Lynch, e Lynch nunca joga pelas regras. O filme começa a se torcer, a se liquefazer diante dos nossos olhos, como um pesadelo febril. A linha entre a realidade e o sonho, entre o desejo e a desilusão, começa a se dissipar. É aqui que Naomi Watts entrega uma das performances mais viscerais da história do cinema, transitando da efervescência de Betty para a profunda amargura e frustração de Diane Selwyn. E essa transição não é sutil; é um soco no estômago, um espelho quebrado que reflete a perda de sentido da realidade. O filme, que parecia ser uma história de detetives amadoras, revela-se uma exploração profunda do trauma, da culpa, da rejeição e da psique fragmentada, quase como se o mundo se tornasse uma manifestação da esquizofrenia de alguém.
Atributo | Detalhe |
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Diretor | David Lynch |
Roteirista | David Lynch |
Produtores | Alain Sarde, Neal Edelstein, Tony Krantz, Michael Polaire, Mary Sweeney |
Elenco Principal | Naomi Watts, Laura Harring, Justin Theroux, Ann Miller, Mark Pellegrino |
Gênero | Thriller, Drama, Mistério |
Ano de Lançamento | 2001 |
Produtoras | StudioCanal, Les Films Alain Sarde, Asymmetrical Productions, Babbo |
Os momentos mais icônicos, como o clube Silencio, onde “não há banda”, e a entrega da misteriosa chave azul, não são apenas cenas; são portais para outra dimensão, onde a lógica cede lugar ao surrealismo puro. É um lembrete de que, por trás da fachada de Hollywood, existe uma máquina que esmaga sonhos, que humilha talentos em audições de casting, e que pode transformar qualquer aspirante a estrela numa sombra do que poderia ter sido. Justin Theroux, como o diretor Adam, personifica a arbitrariedade e a crueldade da indústria, um peão num jogo muito maior.
A segunda metade do filme é onde as identidades se confundem e o passado reprimido de Diane Selwyn, cheio de dor e rancor, emerge de forma avassaladora. Cidade dos Sonhos não é apenas sobre o que acontece na tela; é sobre o que você sente, o que você interpreta. É uma meditação sobre o amor não correspondido, a inveja, o desespero e as fantasias de uma mente atormentada. Lynch nos força a confrontar o quão frágil pode ser a nossa percepção da realidade, mostrando-nos o preço de uma obsessão e o terror de um pesadelo que não tem fim. É um filme trágico, um mergulho no abismo da psique humana que, para mim, representa o ápice da sua filmografia. Não é um filme para ser “entendido” no sentido tradicional; é para ser sentido, para ser absorvido, para nos deixar desconfortáveis e, por fim, fascinados.
Se você ainda não se aventurou por essas ruas sinuosas de Hollywood criadas por Lynch, ou se o fez e saiu confuso, eu te encorajo a dar uma nova chance. Cidade dos Sonhos não é fácil, mas a recompensa é imensa. É uma obra que desafia, instiga e permanece contigo muito depois que os créditos sobem, te fazendo questionar a sua própria realidade.
E você, qual foi a sua primeira impressão de Cidade dos Sonhos? Ele te deixou tão perplexo quanto a mim? Deixe sua opinião nos comentários!