Sabe aquela sensação quando um filme te agarra pela gola, te puxa para perto e não te solta até os créditos finais? Não é só a história, é a alma, a carne, o suor e as lágrimas dos personagens que se derramam na tela. Foi exatamente isso que me aconteceu com “Falling – Ainda Há Tempo”. Já faz um tempo desde que o filme estreou, lá em 2020 no circuito internacional e em 2021 aqui no Brasil, mas sua ressonância é daquelas que não se apagam com o tempo. Pelo contrário, ela se aprofunda, como as rugas de um rosto vivido, ou as cicatrizes de uma ferida antiga.
Por que eu me peguei pensando nele novamente agora, em 2025? Talvez seja porque as discussões sobre família, perdão e o peso do passado nunca envelhecem. Ou porque o diretor e roteirista Viggo Mortensen, em sua estreia atrás das câmeras, conseguiu tecer uma narrativa tão intrincada de emoções que é impossível simplesmente esquecê-la. Ele nos entrega uma história que, de certa forma, é a história de muitos de nós, ou de pessoas que conhecemos: a luta eterna para amar – ou talvez apenas tolerar – aqueles que nos deram a vida, mesmo quando eles parecem determinados a nos ferir.
A premissa é simples, quase banal na superfície: John Peterson (Viggo Mortensen), um homem gay que vive uma vida tranquila e construída com seu parceiro Eric (Terry Chen) e a filha adotiva no calor da Califórnia, recebe a visita de seu pai idoso, Willis (Lance Henriksen), um fazendeiro de Los Angeles que busca um lugar para se aposentar. Mas essa simplicidade é apenas a ponta do iceberg. O que se desenrola é um embate épico de vontades, memórias e feridas que se recusam a cicatrizar. Willis não é um pai gentil e carinhoso; ele é um furacão ambulante de preconceito, homofobia e rancor, e, para complicar ainda mais, está começando a sucumbir aos primeiros e cruéis golpes da demência.
É aqui que a maestria de Mortensen se revela. Ele nos joga para dentro dessa casa, para dentro dessa família, e nos força a encarar o que muitas vezes preferimos varrer para debaixo do tapete: a complexidade das relações parentais abusivas. Willis é um monstro? Sim, em muitos momentos, suas palavras são facas afiadas que rasgam não só o presente, mas também o passado. O brilho nos olhos de Lance Henriksen, uma lenda do cinema que aqui entrega talvez a performance de sua vida, transita entre a lucidez cortante e a confusão dolorosa da mente que se desfaz. É impossível não sentir um calafrio quando ele, com uma sinceridade brutal que a demência parece libertar, destila seu veneno. Você o odeia, mas ao mesmo tempo, você se pergunta: quem era esse homem antes?
Atributo | Detalhe |
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Diretor | Viggo Mortensen |
Roteirista | Viggo Mortensen |
Produtores | Daniel Bekerman, Viggo Mortensen, Chris Curling |
Elenco Principal | Lance Henriksen, Viggo Mortensen, Terry Chen, Sverrir Gudnason, Hannah Gross, Laura Linney, Carina Battrick, Ava Kozelj, Gabby Velis, Bracken Burns |
Gênero | Drama |
Ano de Lançamento | 2020 |
Produtoras | Scythia Films, Perceval Pictures, HanWay Films, Zephyr Films, Ingenious Media |
E é aí que entram os flashbacks, habilmente inseridos, onde Sverrir Gudnason nos mostra um Willis jovem e de meia-idade, igualmente problemático, igualmente teimoso. Não há uma redenção fácil para Willis, e o filme é honesto sobre isso. Não há uma mudança mágica de caráter. O que há é a luta de John para conciliar o pai que ele amou, o pai que o machucou, e o pai que está, lentamente, desaparecendo. Viggo Mortensen, como ator, é uma rocha. Seu John é a personificação da paciência exausta, do amor condicional, da dor guardada. Ele não grita, ele não surta (quase nunca), ele absorve. Vemos em seus olhos o peso de décadas de abusos verbais e emocionais, a tentativa desesperada de encontrar um ponto de contato, uma memória em comum que não esteja manchada.
A dinâmica familiar é um espelho multifacetado. Eric, interpretado com uma quietude digna por Terry Chen, é o porto seguro de John, mas também é o observador impotente, o alvo de ataques homofóbicos que reverberam por toda a sala. Ele não é apenas o “parceiro gay”; ele é a representação do amor que Willis se recusa a ver, a vida que John construiu apesar de Willis. Laura Linney, como Sarah, a irmã de John, adiciona outra camada essencial. Ela é a mediadora, a ponte quebrada entre os dois homens, tentando suavizar as arestas, mas também carregando suas próprias cicatrizes. A maneira como ela defende o pai, mesmo reconhecendo seus defeitos, é um lembrete da lealdade complexa e muitas vezes irracional que se forma dentro das famílias.
“Falling” não é sobre julgar, mas sobre entender a teia de emoções que nos prendem uns aos outros. É sobre a homofobia internalizada e externalizada, sobre como o ódio pode ser transmitido de geração em geração, e sobre a coragem necessária para quebrar esse ciclo. A demência de Willis, em vez de ser uma desculpa para seu comportamento, torna-se uma lupa para sua verdadeira essência, expondo as raízes profundas de sua intolerância e amargura. Mas também, em momentos raros e fugazes, permite que fragmentos de uma memória mais terna, de um amor perdido ou nunca totalmente expresso, venham à tona, deixando John – e nós – com uma faísca de esperança, ou de arrependimento.
Viggo Mortensen, como diretor, mostra um controle impressionante sobre o tom e o ritmo. Ele não tem pressa. Permite que as cenas respirem, que o desconforto se instale. A câmera muitas vezes se demora nos rostos, capturando as microexpressões que revelam mundos interiores. O contraste entre a beleza natural da Califórnia e a feiura das interações humanas é gritante. Você quase pode sentir o sol no rosto enquanto seu estômago se contrai com uma farpa de Willis. Não há trilha sonora manipuladora; os sons ambientes e o silêncio pesado são as trilhas sonoras mais eficazes.
Quando os créditos sobem, a gente não sai com respostas fáceis. Pelo contrário, saímos com mais perguntas, com o coração apertado e a mente fervilhando. É possível perdoar o imperdoável? Existe um limite para o amor filial? Como se lida com a dor de ver quem você ama se desfazendo, tanto pela doença quanto pela maldade inata? “Falling – Ainda Há Tempo” não nos oferece um final catártico ou um abraço caloroso de reconciliação. Ele oferece algo muito mais real e, talvez, mais valioso: um espelho para a complexidade brutal e bela de ser humano, de ter uma família e de enfrentar os fantasmas que insistem em nos seguir. É um lembrete pungente de que, mesmo quando o tempo parece estar acabando, a luta para entender, e talvez, apenas talvez, aceitar, ainda há tempo.