O cinema, pra mim, sempre foi um espelho. Um lugar onde a gente se vê, se perde e, às vezes, encontra um pedaço da nossa própria alma refletido na tela. E é exatamente por essa conexão profunda que me sinto impelido a falar sobre Flag Day: Lembranças Perdidas. Não é apenas um filme; é uma ferida aberta, uma canção melancólica sobre o que significa amar alguém imperfeito, alguém que, por mais que a gente queira, não consegue se encaixar nas caixinhas que a sociedade, ou mesmo o nosso coração, insiste em criar.
Você já se pegou idealizando alguém, talvez um pai, uma mãe, um amigo, para depois a realidade cruel chegar e esfacelar aquela imagem perfeita? É essa desilusão, dolorosa e quase inevitável, que Sean Penn, em sua cadeira de diretor e como protagonista, nos joga com uma intensidade brutal. Ele nos leva de volta a uma era onde o glamour da aventura parecia justificar quase tudo, mas onde as cicatrizes, ah, essas nunca cicatrizam de verdade.
A história, baseada nas memórias de Jennifer Vogel, é um mergulho na vida de John Vogel (interpretado pelo próprio Sean Penn), um pai com um magnetismo inegável. Aquele tipo de cara que, com um sorriso, te convence que o sol nasceu só pra você. Para a filha, Jennifer, ele é o mundo, o inventor de jogos, o contador de histórias, o homem que faz da vida uma grande e emocionante aventura. Mas, por trás desse brilho, desse carisma quase mitológico, esconde-se uma sombra, um segredo que corrói as fundações da família: John Vogel é um ladrão de bancos.
E aqui reside a beleza trágica do filme. Não há vilões unidimensionais nem heróis perfeitos. Há apenas seres humanos complexos, navegando por escolhas moralmente ambíguas e pelas consequências delas. Sean Penn tem uma habilidade rara para construir personagens que, embora errados, nunca são totalmente condenáveis. Ele nos força a olhar para John Vogel e a ver a bondade em meio à irresponsabilidade, a paixão em meio ao caos. É como tentar segurar areia entre os dedos; quanto mais você aperta, mais ela escapa. E essa nuance, essa incapacidade de categorizar de forma fácil, é o que torna “Flag Day” tão visceral.
Atributo | Detalhe |
---|---|
Diretor | Sean Penn |
Roteiristas | John-Henry Butterworth, Jez Butterworth |
Produtores | William Horberg, Jon Kilik, Sean Penn, Fernando Sulichin |
Elenco Principal | Sean Penn, Dylan Penn, Hopper Penn, Josh Brolin, Katheryn Winnick, Eddie Marsan, Dale Dickey, Bailey Noble, Norbert Leo Butz, Adam Hurtig |
Gênero | Drama, Thriller, Crime |
Ano de Lançamento | 2021 |
Produtoras | Ingenious Media, New Element Media, RocketScience, Wonderful Films, Rahway Road Productions, Clyde Is Hungry Films, Conqueror Productions, Buffalo Gal Pictures |
A atuação de Dylan Penn, a filha de Sean Penn na vida real, como Jennifer Vogel é simplesmente cativante. Ela não apenas atua, ela sente cada camada de dor, amor, confusão e resignação. Quando seus olhos se enchem de lágrimas, a gente sente o peso de uma infância marcada pela presença e ausência de um pai tão amado quanto problemático. Não é um amor cego, mas um amor que insiste em ver o melhor, mesmo quando o pior está bem à frente. A química entre pai e filha na tela é inegável, e talvez essa proximidade real adicione uma dimensão de autenticidade que poucos filmes conseguem alcançar. É um diálogo silencioso de olhares e gestos que fala volumes sobre a complexidade dos laços familiares.
O estilo de direção de Penn, como bem notou um colega crítico, remete aos dramas da década de 70. Há uma crueza, uma fotografia que parece desbotada pelas memórias, e um ritmo que permite que as emoções respirem, que as feridas se revelem sem pressa. Não espere um thriller de ação frenético, mas um drama que se desenrola com a lentidão inexorável de um rio, carregando seus segredos e suas mágoas em direção ao mar. Há momentos em que você sente o cheiro do asfalto quente e a poeira das estradas americanas, testemunhando a fuga constante de um homem de si mesmo e das suas responsabilidades.
E o elenco de apoio? Josh Brolin como Uncle Beck e Katheryn Winnick como Patty Vogel trazem uma gravidade e uma resignação que complementam o turbilhão emocional de pai e filha. Eddie Marsan, Dale Dickey… cada um preenche seu pequeno, mas significativo, espaço na tapeçaria fragmentada da família Vogel, mostrando as muitas formas como se é afetado por um furacão humano como John.
Flag Day: Lembranças Perdidas não é um filme fácil de assistir. Ele cutuca as feridas que todos nós carregamos, as perguntas sem resposta sobre por que as pessoas que amamos fazem o que fazem. Mas é um filme necessário, um lembrete de que o amor verdadeiro não é sobre perfeição, mas sobre aceitação. Sobre tentar entender, mesmo quando a lógica nos diz para desistir. É sobre as lembranças que nos marcam, as que perdemos e as que teimosamente se recusam a desaparecer, moldando quem somos, mesmo que a gente não queira.
Quando as luzes do cinema se acenderem (se um dia tivermos a sorte de vê-lo por aqui no Brasil, o que já me deixa com um nó na garganta só de pensar), você provavelmente sairá com um peso no coração, mas também com a sensação de ter testemunhado algo profundamente humano. E isso, meu caro leitor, é o maior elogio que posso dar a uma obra de arte. Um convite para sentir, para refletir e, quem sabe, para perdoar um pouco mais as imperfeições que carregamos e as que encontramos naqueles que nos são mais próximos. Afinal, quem de nós não tem suas próprias “lembranças perdidas” a desenterrar?