Sabe, há filmes que a gente assiste e eles simplesmente grudam na gente. Não apenas pela história, mas pela forma como cutucam feridas ou desenterram medos que nem sabíamos que tínhamos. É exatamente essa a sensação que tive com Presente Amaldiçoado (originalmente “The Advent Calendar”), um thriller de terror belga que me arrebatou quando vi pela primeira vez, lá em 2021, e que ainda hoje ressoa na minha mente como um sino desafinado.
Minha motivação para revisitá-lo e escrever sobre ele agora é simples: ele desafia a nossa percepção de desejo, sacrifício e redenção de um jeito brutalmente elegante. Como alguém que sempre foi fascinado pelas nuances do gênero de horror – especialmente quando ele se aventura em dilemas morais profundos –, Presente Amaldiçoado é um prato cheio. Ele não é sobre sustos baratos, mas sobre a corrosão da alma, sobre o que faríamos para ter a nossa vida de volta, ou uma versão “melhorada” dela. E, cá entre nós, é uma proposta tentadora, não é? Quem de nós nunca sonhou em ter uma segunda chance ou ver um desejo se realizar, sem pensar nas letrinhas miúdas?
O filme nos apresenta Eva, interpretada com uma vulnerabilidade pungente por Eugénie Derouand. Eva era uma dançarina, com a graciosidade e a vitalidade que essa arte exige, mas um acidente de carro cruel a deixou paraplégica, confinada a uma cadeira de rodas. Sua vida, outrora cheia de movimento e luz, agora é um labirinto de frustração e memórias. É nesse cenário de desilusão que entra Sophie (Honorine Magnier), sua amiga, com um presente de aniversário que, à primeira vista, parece uma singela, mas peculiar, tentativa de animá-la: um antigo calendário do Advento de madeira.
Ah, os calendários do Advento! Tão associados à espera alegre do Natal, à inocência infantil. Mas este aqui… este não é um calendário qualquer. Ele vem com regras – regras que, como Eva logo aprende, não devem, não podem, ser quebradas. E é aqui que a história de Patrick Ridremont, que assina tanto a direção quanto o roteiro, se aprofunda no abismo do sobrenatural. Cada pequena porta do calendário esconde não apenas um “presente”, mas um pacto, uma tentação, um passo a mais em uma dança macabra com o desconhecido.
| Atributo | Detalhe |
|---|---|
| Diretor | Patrick Ridremont |
| Roteirista | Patrick Ridremont |
| Produtores | Alain Benguigui, Jean-Yves Roubin, Cassandre Warnauts, Virginie Ogouz |
| Elenco Principal | Eugénie Derouand, Honorine Magnier, Clément Olivieri, Janis Abrikh, Cyril Garnier |
| Gênero | Terror, Thriller, Drama |
| Ano de Lançamento | 2021 |
| Produtoras | Sombrero Films, Siddhi Films, Frakas Productions, ZED, RTBF, VOO, BeTV |
A atuação de Eugénie Derouand como Eva é o coração pulsante do filme. Ela nos permite ver a dor, a raiva, a desesperança e, por fim, a ambivalência moral em seu olhar. Não é fácil interpretar uma personagem que, impulsionada pelo desejo de andar novamente – um desejo visceral e compreensível para qualquer um de nós –, começa a fazer escolhas questionáveis. Vemos suas mãos, outrora ágeis no balé, agora hesitando antes de abrir uma nova porta, sabendo que cada abertura trará consigo não só uma dádiva, mas também uma dívida impagável. A forma como Derouand transita da fragilidade à uma determinação sombria é impressionante e nos força a questionar: até onde iríamos em uma situação similar?
O filme não se contenta em ser um simples conto de terror. Ele explora as complexidades das relações humanas, a fina linha entre amizade e egoísmo. Sophie, por exemplo, é a amiga que dá o presente, mas suas motivações e a sua percepção da dor de Eva são filtradas por uma lente que não é a mesma de Eva. E os homens na vida de Eva – William (Clément Olivieri) e Antoine (Janis Abrikh) – servem como catalisadores e vítimas colaterais, cada um revelando uma faceta diferente da espiral de desespero e poder que o calendário desencadeia. Até mesmo Boris (Cyril Garnier) surge para adicionar mais uma camada de dilema à vida já complicada de Eva.
Ridremont, com sua direção e roteiro, constrói uma atmosfera sufocante. A cinematografia é muitas vezes escura, opressiva, e a forma como a câmera acompanha Eva, seja em sua cadeira ou, em momentos de delírio, em seus passos hesitantes, é magistral. Ele usa o simbolismo do calendário de Natal, com sua contagem regressiva para um “dia feliz”, e o inverte completamente. Aqui, a contagem regressiva é para uma revelação sombria, para a perda da inocência e, talvez, da alma. A temática de Natal, que deveria trazer consolo, só serve para acentuar a perversidade do jogo.
Presente Amaldiçoado é um estudo de personagem disfarçado de filme de terror sobrenatural. Ele nos força a olhar para as nossas próprias fraquezas, para os nossos desejos ocultos e para a nossa capacidade de justificar o injustificável quando o prêmio é algo que ansiamos desesperadamente. A deficiência de Eva não é um mero artifício de enredo; ela é o motor de sua desesperança e o combustível para suas escolhas. É um lembrete vívido de que a linha entre a esperança e o terror é muitas vezes tênue, e que alguns “presentes” vêm com um preço muito alto.
Este filme não busca apenas nos assustar; ele quer nos fazer pensar. Ele quer nos deixar com aquele frio na espinha que vem não de um monstro pulando da tela, mas da terrível compreensão do que somos capazes quando encurralados pela vida. E por essa humanidade crua e esse convite à reflexão, Presente Amaldiçoado merece ser visto e, mais importante, sentido. É um horror que se infiltra sob a pele e permanece ali, muito depois que os créditos sobem.




