Ah, memória. Essa caixinha de Pandora que a gente carrega, cheia de ecos e fantasmas. Volta e meia, me pego pensando em como seria se, de repente, ela nos fosse arrancada, só pra depois, dolorosamente, começar a costurar de volta os retalhos de um passado que talvez fosse melhor esquecido. É exatamente essa inquietação, essa dança macabra entre o que fomos e o que podemos nos tornar, que me puxou de volta a Pecados Mortais, um thriller de ação que, mesmo lançado em 2012, ainda ressoa com uma força silenciosa nos cantos mais sombrios da nossa consciência.
Não é todo dia que um filme te convida a um mergulho tão profundo no purgatório pessoal de um personagem. David, interpretado por um Steven Bauer que sabe como carregar o peso do mundo nos ombros, não é um herói convencional, ou sequer um anti-herói charmoso. Ele é um mafioso que, depois de um acidente brutal, acorda com a mente em branco, um quadro em branco onde crimes e traições estavam pintados em tons de sangue. E é nesse apagão, nesse vazio existencial, que o filme de Carlo Fusco e roteiro de Christian Repici nos pega pela mão, ou melhor, pelo pescoço, e nos força a acompanhar a lenta e angustiante reconstrução de uma identidade forjada na violência.
Pense comigo: o que acontece quando a amnésia, que para muitos seria uma bênção, começa a se dissipar, revelando monstros que você mesmo criou? David não apenas se lembra de ter feito parte de uma família, ele se lembra de tê-la traído. Isso não é um simples dilema moral, sabe? É um terremoto interno. A tentativa de redenção, que surge como uma luz tênue no fim do túnel, é rapidamente engolida pela realidade implacável do mundo que ele habitava. Fugir, então, torna-se a única rota de escape, um caminho desesperado em busca de suas origens italianas. E essa jornada, boa parte dela em um trem, não é só uma fuga física; é uma travessia existencial. Aquele vagão se transforma numa espécie de claustro, onde David é forçado a confrontar o David que era.
A escolha do elenco, inclusive, fala volumes. Ver Michael Madsen como Don Mancino, o patriarca traído, é como assistir a um relógio suíço da crueldade: preciso, implacável. Madsen tem essa capacidade ímpar de comunicar ameaça com um simples olhar, e aqui, ele é a personificação do passado que David não consegue, e nem deve, ignorar. E aí entra Danny Glover, como o Padre Leonard. Caramba, que figura! Ele não é só um coadjuvante; é a voz da consciência, o espelho moral que David, cego pela escuridão de seus pecados, tanto precisa. A presença de um padre num universo de gângsteres não é nova, mas Glover traz uma humanidade e uma ambiguidade que enriquecem demais a narrativa. Ele não está ali pra dar respostas fáceis, mas pra fazer as perguntas certas, aquelas que doem.
Atributo | Detalhe |
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Diretor | Carlo Fusco |
Roteirista | Christian Repici |
Produtores | Carlo Fusco, Cédric Gonella |
Elenco Principal | Steven Bauer, Ervin Bejleri, Danny Glover, Michael Madsen, Gabriele Arena |
Gênero | Thriller, Ação |
Ano de Lançamento | 2012 |
Produtoras | Wind of Corleone Film, Encasa Entertainment, Gonella Productions, North2north, S.C. MYCOUNTRY PRODUCTION, Two Brothers Production |
Eu adoro como o filme não tem medo de mergulhar nas sombras. Não há glamourização da vida criminosa, o que a gente vê é a podridão por dentro. E os gêneros, Thriller e Ação, são usados não para um espetáculo vazio, mas para sublinhar a urgência e o perigo constante da situação de David. Cada cena de tensão, cada momento de fuga, serve para nos lembrar que não há paz fácil para quem trilhou esse caminho. A produção, com nomes como Wind of Corleone Film e Gonella Productions, sugere uma sensibilidade que se traduz na tela, talvez até uma pegada mais independente que permite uma abordagem menos polida e mais crua dos temas.
Pensando nas palavras-chave, a ideia de “sins” (pecados) é o coração pulsante do filme, claro. Mas a menção a “blind” (cego), mesmo que não haja um personagem literalmente cego na sinopse, ressoa de forma poderosa com a jornada de David. Ele estava “cego” para as consequências de suas ações, “cego” para a traição, e depois “cego” para o homem que realmente era. Sua busca pela memória é, na verdade, uma busca por um tipo de visão, por uma clareza que é ao mesmo tempo libertadora e apavorante. O “train” (trem) não é apenas um meio de transporte; é a própria metáfora da vida em movimento, sem volta, carregando consigo os passageiros e seus fardos.
Pecados Mortais é mais do que um filme sobre a máfia; é um estudo sobre a identidade, a culpa e a possibilidade, ou impossibilidade, de redenção. É sobre aquele momento em que a vida te dá uma segunda chance, mas o passado se recusa a ser enterrado. E pra mim, que já vi tantos filmes tentando abordar temas semelhantes, esse aqui conseguiu, de um jeito meio tortuoso e melancólico, me fazer sentir o peso de cada lembrança que David recuperava. E você? O que faria se acordasse um dia e o espelho te mostrasse um estranho, um estranho com as mãos sujas de um passado que não é o seu, mas que, no fundo, é mais seu do que qualquer outra coisa? Essa é a pergunta que Pecados Mortais me deixou, e que, de tempos em tempos, ainda me assombra.