Duas horas e quarenta minutos. Essa é a duração de TÁR, um filme que, para muitos, pode soar como uma eternidade, mas que para mim, mais de dois anos após sua estreia no Brasil em janeiro de 2023, continua a ressoar com uma força quase sísmica. E por que diabos eu voltaria a ele agora, em outubro de 2025, para destrinchá-lo novamente? Porque certas obras não se esgotam na primeira, nem na segunda, nem na terceira vez que as vemos. Elas se aninham em você, provocam, e te fazem revisitar suas próprias convicções sobre arte, poder e a natureza humana.
TÁR não é só um filme; é uma experiência densa, por vezes desconfortável, que nos joga no mundo de Lydia Tár (interpretada com uma fúria controlada e brilhantismo assombroso por Cate Blanchett). Ela é, ou pelo menos foi, um titã. Uma das maiores compositoras e regentes vivas, a primeira maestrina chefe de uma grande orquestra alemã. Imagine a gravidade disso. O palco é o mundo internacional da música clássica, e Todd Field, o diretor e roteirista, nos imerge ali com uma precisão cirúrgica, como se cada corte fosse a batida de um metrônomo implacável.
Desde o primeiro minuto, o filme deixa claro que esta não é uma biografia convencional. É uma ficção, sim, mas com um realismo visceral que nos faz questionar os limites da genialidade e da conduta. Vemos Lydia, em Berlin e Nova York, a personificação da excelência musical. Suas aulas magnéticas, suas entrevistas articuladas, a forma como ela comanda a orquestra – há uma autoridade inquestionável em cada gesto, em cada palavra. E Cate Blanchett? Ah, Blanchett. Ela não interpreta Lydia Tár; ela é Lydia Tár. Seus olhos, que podem alternar entre a inteligência aguda e um vazio gélido, as mãos que tremem ligeiramente quando a fachada começa a ruir, a forma como ela assume a fisicalidade de uma maestrina… é um estudo de personagem tão intenso que você se pega respirando no ritmo dela. É uma daquelas atuações que você tem que ver para crer, que te faz pensar: como alguém consegue isso?
Mas a genialidade, como o filme dolorosamente nos lembra, muitas vezes caminha de mãos dadas com a arrogância e o abuso. Lydia vive com sua esposa violinista, Sharon Goodnow (Nina Hoss, que nos entrega uma performance silenciosamente devastadora de dor e resignação), e a filha adotada, Petra. Mas sua vida é uma complexa teia de relacionamentos profissionais e pessoais, onde as linhas entre mentorado e alvo são perigosamente borradas. Há Francesca Lentini (Noémie Merlant), sua assistente pessoal, que navega entre a admiração e o ressentimento, e Olga Metkina (Sophie Kauer, uma violoncelista de verdade, o que adiciona uma camada de autenticidade), uma jovem e talentosa musicista que se torna o novo objeto de sua atenção. A infidelidade, a manipulação, o exercício de poder sobre aqueles que anseiam por uma chance no mundo da música – tudo isso constrói um ambiente tóxico que Lydia, em sua cegueira egocêntrica, parece incapaz de perceber.
Atributo | Detalhe |
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Diretor | Todd Field |
Roteirista | Todd Field |
Produtores | Todd Field, Alexandra Milchan, Scott Lambert |
Elenco Principal | Cate Blanchett, Nina Hoss, Noémie Merlant, Sophie Kauer, Julian Glover |
Gênero | Música, Drama |
Ano de Lançamento | 2022 |
Produtoras | Focus Features, Standard Film Company, EMJAG Productions |
E é aqui que o filme se torna um espelho para os debates mais fervorosos da nossa era, a “cancel culture” e o movimento MeToo. TÁR não toma partido fácil. Ele não pinta Lydia como uma vilã unidimensional, nem a absolve. Ele nos força a olhar para a complexidade. Como separamos a arte do artista? Podemos admirar a beleza de uma sinfonia enquanto condenamos a conduta de seu criador? A queda de Lydia é lenta, inexorável, como uma peça musical que começa com um tema grandioso e termina em discórdia dissonante. É uma história de advertência, um drama que te faz refletir sobre o peso da reputação e o quão frágil ela pode ser, especialmente quando as fundações morais estão corroídas.
Todd Field nos faz sentir o peso dos corredores frios de Berlim, a opulência dos auditórios, a tensão dos ensaios. O som é um personagem à parte: o silêncio que precede a batuta, o rugido da orquestra, os pequenos ruídos que começam a invadir a percepção de Lydia, quase como um presságio. A fotografia é impecável, com planos longos que nos convidam a observar, a sentir o ritmo da vida de Lydia.
Alguns acharam o filme enfadonho, talvez um pouco longo demais. E eu entendo. Não é um filme para o espectador que busca gratificação instantânea. TÁR exige paciência, entrega. Ele te desafia a mergulhar nas profundezas da psique de uma mulher brilhante, mas profundamente falha, e a confrontar as ambiguidades morais que permeiam sua existência. Mas para aqueles que aceitam esse desafio, a recompensa é uma obra-prima de realização cinematográfica, um drama musical que ecoa muito tempo depois que as luzes da sala se acendem. Não é um filme que se esquece, tá? Ele é uma sinfonia de poder, ambição e queda, e seu tema principal ainda ressoa alto no grande palco da minha memória cinematográfica. E, acredito, na de muitos outros.