Uma Garota de Muita Sorte

Sabe, há filmes que a gente assiste e, passados alguns dias, eles já se esvaíram da memória como fumaça. E há aqueles que se instalam, fincam raízes e nos forçam a revisitar perguntas incômodas, mesmo anos depois. Para mim, Uma Garota de Muita Sorte é, sem dúvida, um desses últimos. Já se vão três anos desde que ele chegou ao Brasil, lá em 2022, e ainda sinto a força do seu soco no estômago quando reflito sobre o que presenciei. É por isso que sinto a necessidade de escrever sobre ele, de descompactar essa história que, à primeira vista, parece um conto de fadas moderno, mas que, no fundo, é um abismo.

Quando você encontra Ani Fanelli, interpretada com uma intensidade palpável por Mila Kunis, ela é a epítome do sucesso nova-iorquino. Redatora de uma revista badalada, noiva de um homem charmoso e rico, Luke Harrison (Finn Wittrock), e com um guarda-roupa que faria inveja a qualquer editora de moda. A vida, aos olhos de quem vê de fora, é uma tela perfeita, pintada com tons de ouro e champanhe. Mas, como bem nos lembra o trecho da crítica que nos deu o tom, esse contraste entre o “perfeitamente perfeito” e o que se esconde debaixo da superfície é o grande trunfo visual e narrativo que o diretor Mike Barker soube orquestrar com maestria. Você sente o peso da fachada de Ani; a forma como ela sorri, por exemplo, não é de alegria genuína, mas um escudo cuidadosamente construído para desviar olhares e perguntas. Suas mãos, sempre firmes e controladas na superfície, parecem esconder uma agitação interna que ameaça irromper a qualquer momento.

Mas o que exatamente ameaça desmantelar essa vida meticulosamente trabalhada? Ah, meu amigo, é aqui que o filme de Jessica Knoll, que também roteirizou a adaptação de seu próprio livro, mergulha em águas turvas e dolorosas. Não estamos falando de um segredo trivial, mas de uma verdade sombria, um trauma que Ani carrega desde a adolescência, envolvendo estupro coletivo e, mais tarde, um tiroteio escolar. Não é fácil de assistir, e nem deveria ser. O filme nos joga na complexidade de uma protagonista que, para sobreviver, moldou uma nova identidade, suprimindo o que aconteceu, esperando que o silêncio pudesse, de alguma forma, apagar as cicatrizes.

Mila Kunis, eu te digo, entrega uma performance de cair o queixo. Ela não apenas interpreta Ani, ela se torna Ani. Vemos a ferida aberta em seus olhos, a dor latente por trás do sarcasmo afiado, a resiliência exaustiva de quem vive em constante modo de fuga. É um mergulho profundo na psique de uma mulher que foi vítima, mas que a sociedade muitas vezes tenta pintar como cúmplice, especialmente quando o tema envolve estupro. A forma como ela oscila entre a raiva contida e a vulnerabilidade crua é fascinante e desesperador. E a jovem Ani, interpretada por Chiara Aurelia, é igualmente fundamental, nos transportando para os momentos brutais do passado, criando uma ponte cruel entre a inocência roubada e a mulher endurecida.

Atributo Detalhe
Diretor Mike Barker
Roteirista Jessica Knoll
Produtores Bruna Papandrea, Lucy Kitada, Jeanne Snow, Erik Feig, Mila Kunis
Elenco Principal Mila Kunis, Chiara Aurelia, Finn Wittrock, Connie Britton, Scoot McNairy
Gênero Drama, Thriller, Mistério
Ano de Lançamento 2022
Produtoras Orchard Farm Productions, Made Up Stories, Picturestart

O roteiro de Knoll é corajoso ao não oferecer respostas fáceis. Pelo contrário, ele nos força a confrontar as ambiguidades da memória, da culpa e da busca por justiça. Ani é uma figura complexa, cheia de contradições. Ela é forte, mas fragilizada; determinada, mas assombrada. E a relação dela com a mãe, Dina (Connie Britton), é um retrato de como o trauma pode reverberar não apenas na vítima, mas também naqueles que a amam, com erros e acertos que apenas a vida real pode conceber. Você percebe o amor ali, mas também a incapacidade de lidar com a profundidade da ferida, o que gera uma dinâmica de apoio e, ao mesmo tempo, de uma espécie de abandono emocional.

A direção de Mike Barker é precisa, alternando entre a frieza calculada da Nova York contemporânea e a atmosfera opressora dos flashbacks. A cinematografia, como o trecho da crítica bem apontou, é impecável, usando a luz e a sombra para sublinhar os estados de espírito de Ani. Há momentos de um silêncio quase ensurdecedor, que permitem que o desconforto se instale no espectador, nos obrigando a sentir um pouco do que Ani sente. Não é um filme para se sentar confortavelmente e apenas consumir; é para ser sentido, debatido, questionado.

Uma Garota de Muita Sorte levanta perguntas difíceis: qual o preço do silêncio? O que significa ser uma “garota de sorte” quando seu passado é um labirinto de horrores? E até que ponto a vingança pode ser um caminho para a cura, ou apenas uma nova ferida? É um thriller psicológico que usa o mistério não apenas para prender nossa atenção, mas para nos fazer refletir sobre a cultura do estupro, a vitimização de quem sofre e a dificuldade de encontrar voz após o indizível. Ele nos lembra que a memória é seletiva, mas o corpo e a alma nunca esquecem. E, anos depois, o filme permanece relevante, um espelho incômodo para a sociedade e um testemunho da resiliência (e das cicatrizes) de uma mulher que se recusou a ser definida apenas pela sua dor. Uma garota de muita sorte? Talvez não. Mas certamente, uma mulher de uma força inabalável.

Trailer

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